No início de agosto ocorreu o que foi considerado uma das maiores conquistas pela causa animal no estado de São Paulo: o projeto de lei 523/2023. De autoria do deputado estadual Rafael Saraiva (União Brasil-SP), o texto tinha como principal proposta regularizar a criação e proibir o comércio de animais de estimação em petshops e lojas similares.
Aprovado por unanimidade na câmara dos deputados , o PL precisaria passar apenas pela sanção do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que o vetou integralmente. O veto ocorreu no último dia 9 , o que já era esperado.
Em setembro, como noticiado pelo iG Último Segundo , o governador teria se reunido com confederações e representantes de grandes empresas para ouvir as demandas sobre o projeto e “sido pressionado a vetar o texto” pelas empresas que seriam diretamente afetadas.
Ao Canal do Pet , o deputado Rafael Saraiva diz que, de fato, o veto não foi uma surpresa: “Fui chamado pelo governador um ou dois dias antes para conversar e ele me adiantou que não estava confortável nem para sancionar, nem para vetar, porque é um tema delicado, que causou uma comoção popular.”
O parlamentar reforça que o tema “mexeu com a sociedade”, mas que Tarcísio ouviu “tanto o setor comercial quanto o clamor da sociedade”. Rafael diz não acreditar que o governador tenha aderido ao "lobby" do empresários, mas admite que ficou “muito chateado” com a decisão.
“Tinham pontos que não deixavam ele [Tarcísio] confortável para sancionar o projeto. Não acho que ele aderiu ao lobby, mas fiquei muito chateado pela causa animal, me entristeceu muito, porque de fato a causa animal necessita muito de mudanças”, diz Rafael.
Palavra das ONGs
Haiuly Viana, médica-veterinária e gerente técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, afirma que não entende a decisão de Tarcísio da mesma forma que o deputado Rafael Saraiva. Segundo ela, o governador preferiu a liberdade econômica, em detrimento da liberdade dos animais.
“Como ativistas do direito animal nos revolta que o governador Tarcísio apoie a comercialização dos animais em situações tão precárias e que desrespeitam condições mínimas, com a justificativa econômica”, afirma a porta-voz do Fórum Animal.
Para ela, é “lamentável que ao invés de considerar as cinco liberdades do bem-estar animal, o governador tenha escolhido a ‘liberdade constitucional de iniciativa econômica’ ao acreditar em ‘exercício responsável de atividades comerciais’.”
As 5 liberdades do bem-estar animal são: serem livres de fome e sede; livres de desconforto; livres de dor, doenças; livres para expressar comportamento natural e livres de medo e estresse.
Possíveis interesses por trás do veto
O texto original do PL 523/2023 não proibia a venda de animais de estimação, como cães e gatos, contudo, trazia uma série de regras para regulamentar a prática, visando o bem-estar e a saúde dos pets, assim como a criação do Ceca (Cadastro Estadual do Criador de Animal).
As partes mais afetadas pela mudança seriam as lojas, que não poderiam mais vender os filhotes em suas unidades. Apesar disso, o deputado autor do PL afirma não acreditar que tenha algum interesse por trás do veto.
“Acredito que são convicções do governador, pois trata-se de um governo mais liberal, que defende o livre comércio, e não restringe o comércio”, diz Rafael Saravia ao Canal do Pet . “Ao invés de proibir a prática comercial, ele trouxe apenas mais limitações. Foi um primeiro passo, um primeiro degrau para a causa animal.”
Segundo Haiuly, do Fórum Animal, no entanto, a realidade é que “o governador desconhece ou ignora conscientemente os impactos do incentivo da comercialização de vidas, como o baixo grau de bem-estar dos animais explorados como matrizes reprodutoras, a situação dos filhotes expostos em condições precárias nos estabelecimentos e o risco que a aquisição por impulso pode acarretar, como animais pouco socializados, que podem ser vítimas de abandono ou outras formas de maus-tratos.”
Em posicionamento oficial, a advogada Ana Carolina Arantes, do departamento jurídico do Instituto Ampara Animal , diz que “como forma de compensar o veto, Tarcísio propôs um anteprojeto de lei que estabelece requisitos para a proteção, saúde e bem-estar de cães e gatos para sua comercialização, que por sua vez foi protocolado junto a Alesp para apreciação da Casa”.
Para a advogada, o projeto original tinha como foco suprir as falhas da legislação e do modelo de execução administrado pelo Poder Público que, segundo ela “se omite em inúmeros casos de abandono e maus-tratos aos animais.”
“A suposta alegação de se tratarem de projetos inconstitucionais não se faz verdadeira”, continua a advogada. “Isto porque, já é reconhecida pela jurisprudência e por decisões dos Tribunais o entendimento de que os animais são seres sencientes , além da Lei de Crimes de Ambientais dispor que: ‘praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos’, considerado o aumento de pena para condutas em face de cães e gatos, ‘é crime’.”
“Em contrassenso ainda afirma o governador que a proposta vai de encontro a economia e as atividades comerciais. Aqui nos resta perguntar, a liberdade econômica se sobrepõe a uma vida?”, questiona Ana Carolina.
Um primeiro passo para a causa animal
Mesmo com o veto do projeto, as alterações no documento mantiveram alguns pontos importantes, como a proibição de filhotes em vitrines, algo que expõem os animais a situações de estresse, conforme o texto.
“Considero que o texto que o governador enviou à Alesp proibindo a exposição de animais em vitrines é uma conquista do meu mandato”, diz o parlamentar do União Brasil, autor do texto, que reforça ser “uma primeira conquista para os animais.”
Além disso, regular a venda de animais em sites como Mercado Livre e OLX é um outro passo que deve ser considerado, afirma o deputado: “É uma conquista histórica para o estado de São Paulo, que com certeza vai refletir em todo o território nacional.”
O Ceca, no entanto, não existirá mais pelo novo PL apresentado pelo governador de São Paulo, não havendo mais uma forma de separar os considerados “criadores responsáveis” das “fábricas de filhotes”, esclarece o parlamentar.
“O PL 523/2023, de minha autoria, criava o Ceca. O novo texto enviado pelo governador não propõe esse cadastro. A ideia do Ceca era criar a figura do criador regular, e infelizmente seguimos sem ter como distinguir o que é um criador regularizado no estado de São Paulo”, lamenta Rafael.
Imperfeições no projeto
De acordo com a porta-voz do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, apesar de sua extrema importância para a causa animal, o PL 523/2023 apresentava alguns “pontos questionáveis”.
“Entre os pontos que analisamos como problemáticas estavam a inexistência de definição de qual setor do estado ficaria incumbido de realizar este citado cadastro dos criadores e tampouco quais os critérios estabelecidos para o mesmo”, apontou a porta-voz em nota.
“Da forma como estava, o cadastro não seria capaz de estabelecer os necessários e rigorosos requisitos de bem-estar animal para impedir que alguns indivíduos continuassem a ser tratados como matrizes reprodutoras.”
O Fórum Animal ressalta que “a mera manutenção dos animais como itens a serem comercializados e tratados como mercadorias, em si, desrespeita a senciência e contraria princípios básicos da dignidade animal.”
“Outro ponto que questionamos na época era que o texto do PL não mencionava as plataformas e sites de venda ou redes sociais, dispondo apenas da proibição de venda por pessoa física”, complementa. Para o Fórum Animal, “a publicidade da venda em ambiente digital mantém o acesso rápido para aquisições de animais por impulso, diminuindo a eficiência da proposta.”
Cachorros, gatos e outros animais de estimação
Outros animais de estimação que sofrem com o comercio irregular são as aves, muitas vezes expostas, em grande número, presas em uma única gaiola.
Até o momento, no entanto, o deputado afirma que “não existe uma lei que doutrine a venda de pássaros domésticos no estado de São Paulo”, algo que, segundo texto enviado à imprensa em 13 de setembro, a iniciativa era proposta dentro do Ceca.
“A lei dispõe sobre a criação de animais domésticos no estado de São Paulo, considerando cachorros, gatos e pássaros domésticos ”, dizia a nota, que já foi invalidada após o veto do governador.
Para outros animais de estimação, como coelhos , porquinhos-da-índia , hamsters , por exemplo, (que também são considerados cobaias), Rafael aponta que já existe uma restrição de competência legislativa para legislar acerca destes. “Por isso, no meu projeto, abarquei apenas cães, gatos e pássaros domésticos.”
Haverá insistência
“Ainda tentarei ser o relator do PL 1477/2023 na Alesp , e todos os deputados poderão propor emendas e substitutivos ao projeto enviado pelo governador”, afirma Rafael.
O deputado reforça que, apesar das negociações, não é possível garantir que haverá uma nova alteração no projeto aprovado por Tarcísio de Freitas.
“Só nos resta continuar na luta por uma sociedade mais justa e ética que busque contribuir para a mudança na realidade de cães e gatos vítimas de abandono e de maus-tratos, o que somente será alcançada com ações educativas através de projetos, campanhas e principalmente políticas públicas”, aponta Ana Carolina, da Ampara Animal.
“Claro, tentaremos trazer melhorias e continuaremos as negociações com o Executivo para alterar o projeto enviado pelo governo. Mas não temos como cravar se haverá alguma alteração no texto enviado.”, finaliza Rafael.
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