Na
Alemanha
, o número de cães em situação de rua ínfimo. O país atingiu esse marco implementando uma série de leis que impedem o crescimento de animais na rua e restringem o número de pessoas que podem ter pets em casa, exigindo maior tempo e cuidado na adoção e registro desses animais.
Entre essas leis está o Hundesteuer, cobrado em mais de 10 mil municípios alemães. O chamado "imposto do cão" é cobrado anualmente, e pode chegar a 1 mil euros (cerca de 5.378 na cotação atual), a depender do porte e da raça do pet adotado.
Mais leis que diferenciam a Alemanha de outros países na questão, são, por exemplo, o registro obrigatório que o animal adotado precisa ter na Prefeitura. Isso cataloga e evita que o poder público fique no escuro sobre a quantidade de cães em cada cidade.
A depender da raça o país também exige
microchipagem
, e que os cachorros frequentem escolas de adestramento. A microchipagem existe para identificar os cães de raças mais agressivas, e as escolas de adestramento para educar o animal e evitar que ele machuque ou cause danos materiais às pessoas. O controle de animais de rua também permite o controle das zoonoses
— doenças transmitidas de animais aos humanos.
Trazendo para a nossa realidade, o Brasil ainda está longe deste cenário. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em pesquisa
realizada em 2022, o país possui cerca de 30 milhões de animais abandonados, e mais da metade deste número, cerca de 20 milhões, são cachorros.
Levando em consideração o êxito na Alemanha, é possível alcançarmos, por aqui, uma realidade diferente?
O que já existe
No Brasil, o direito animal é assegurado pelo artigo 225, parágrafo 1°, inciso 7º da Constituição Federal , que diz: “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Há também outros dois princípios norteadores na legislação brasileira que amparam o direito animal: as cinco liberdades e os três "R". As cinco liberdades dizem respeito aos direitos de:
- Não sentir fome ou sede;
- Ser livre de qualquer desconforto;
- Não sentir dor ou adoecer;
- Liberdade para expressar seus comportamentos naturais;
- Não sentir medo ou se estressar.
Já os três "R" se referem a processos científicos, vêm do inglês, e são equivalentes aos conceitos de Redução, Substituição e Refinamento. O primeiro diz respeito à diminuição do uso de animais como cobaias em laboratórios; o segundo, à substituição destes animais por outras alternativas; e o terceiro, ao refinamento dos processos para alcançar resultados evitando dor e sofrimento aos animais.
Na prática, os esforços da lei estão na fiscalização e na conscientização da população por meio da educação. A lei permite que ONGs atuem em processos de resgate e acolhimento, além de estimular a criação de campanhas educativas, palestras e ações de sensibilização, criadas e desenvolvidas pelo poder público.
Rita de Cássia da Silva, advogada especialista em Direito Internacional e consultora jurídica em legislação brasileira nos Estados Unidos indica que a legislação pode ser aprimorada para garantir que aqueles que não cumprem suas obrigações como tutores enfrentem consequências legais.
“Também podemos citar incentivo a uma adoção responsável, criando políticas que promovam essa adoção, facilitando esse processo e oferecendo incentivos fiscais para esses tutores adotantes”, afirma ela.
Um parâmetro importante para analisar como o Brasil cuida de seus animais é o API , mapa interativo elaborado pela World Animal Protection em 2020 que traça um panorama de cuidados com animais entre 50 países diferentes.
Também citado por Rita, o mapa dá a classificação "D" para o Brasil, em uma escala de "A" a "G", indicando que ainda há muito a ser feito para o bem-estar animal no país. Em comparação, a Alemanha é classificada com a letra "C", enquanto países do norte, como Suécia, Dinamarca ou Holanda, receberam classificação "A".
“Das ações determinantes e comuns entre países para erradicar os maus tratos de animais, podemos apontar a comunicação e a conscientização; isto é, a presença de um órgão consultivo sobre a política de proteção aos animais, que tem a participação intensa na sociedade civil e de empresários, além de leis eficazes com previsão de confisco dos animais, multas altíssimas e prisão.”
Ela finaliza indicando que nos países de mais alta classificação “o governo assume sua responsabilidade na educação para que padrões adequados de bem-estar animal sejam mantidos por todos e, principalmente, por responsáveis tutores pelos animais”. Neste sentido, iniciativas pipocam no Brasil, tanto estadual quanto nacionalmente.
Projetos parlamentares brasileiros
Na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), por exemplo, duas frentes parlamentares cuidam do assunto: a Frente Parlamentar em Defesa e Proteção de Animais, comandada pelo deputado Rafael Saraiva (União); e a recém-criada Frente em Defesa dos Animais Domésticos, do deputado Carlão Pignatari (PSDB).
Há também em tramitação no Congresso Nacional o PL 1070/22 , que institui a Política de Bem-Estar Animal e versa sobre obrigatoriedade de vacinas e responsabilidade do tutor sobre danos causados pelo animal, — uma pauta semelhante às iniciativas alemãs.
A reportagem procurou os deputados no comando das Frentes e questionou sobre a possibilidade de leis mais rígidas no Brasil e em São Paulo . Para Carlão, a experiência de outros países deve sim ser considerada na elaboração de leis para o território nacional, mas cada país tem suas características particulares, questão que deve também ser considerada em possíveis discussões sobre o tema.
Até o momento do fechamento da reportagem, Rafael Saraiva ainda não havia se manifestado sobre o tema. O espaço segue aberto.
Entre a saúde humana e a saúde animal
Profissionais da área da saúde, que lidam diariamente com os bichinhos, também buscam por alternativas e entendem a necessidade e importância de uma mudança de atitude no Brasil.
Apresentada às propostas alemãs, a médica veterinária Aline Ambrogi Franco Prado, docente do curso de Medicina Veterinária do Centro Universitário de Jaguariúna (UniFAJ), do grupo UniEduK, acredita que o país europeu oferece soluções viáveis ao Brasil.
“A população também precisa de conscientização do que é uma posse responsável. Saber que ao adotar ou comprar um pet é necessário ter cuidados básicos que, quando não ofertados, caracterizam-se como um crime. [...] Isso demanda tempo e custo. E, infelizmente, se a pessoa não tiver essa disponibilidade, não deve ter um bichinho de estimação.”
Outra medida bastante utilizada para controlar a população de rua animal é a
castração
. Contudo, apesar de eficaz, ela não pode ser a única solução para um problema tão complexo.
De acordo com o médico veterinário Harald Fernando Vicente de Brito, doutor em Ciências Veterinárias pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), entre outras medidas possíveis estão tanto a regulamentação de abrigos quanto a limitação por lei da procriação caseira dos animais.
“Acredito que deveria ser proibida a procriação doméstica e os canis, e gatos de criação deveriam ser regulamentados. Toda a reprodução deveria ser controlada e todo animal que nascesse deveria ser registrado e 'chipado'. A comercialização ou a doação também deveria ser registrada. Assim, se um animal fosse encontrado na rua, seria possível identificar sua origem.”
Um dos grandes problemas associados aos animais de rua são as zoonoses, aponta Harald, que é especialista no tema. Os animais se tornam vetores importantes de doenças que, além de apresentarem risco para a saúde humana, são um risco ainda maior para a saúde dos outros animais, que transmitem as doenças entre si.
Aline corrobora com as informações, indicando que cuidar dos animais também significa cuidar da espécie humana. “Uma cidade que cuida dos animais é uma cidade governada por pessoas que se preocupam com o ser humano, afinal os animais e o homem fazem parte de uma saúde única.”, complementa.
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