O uso de medicamentos à base de cannabis já é comprovadamente eficaz para uma série de tratamentos, ajudando a melhorar a saúde de pacientes em relação a questões físicas e psicológicas.
Infelizmente, a falta de regulamentação ainda atrasa as pesquisas que poderiam auxiliar muitos animais que sofrem com problemas de dores crônicas, incluindo animais paraplégicos e tetraplégicos.
A ativista e defensora dos animais Simone Gatto , que lidera uma campanha pela liberação do canabidiol para tratamentos veterinários, é tutora seis gatos paraplégicos.
Ela fala ao Canal do Pet sobre sua gatinha Denise, de 19 anos. A sofre com diversos problemas de saúde devido a tetraplegia, mas teve uma melhora significativa, segundo a tutora, desde que começou um tratamento com o uso de canabidiol (CBD).
O acompanhamento médico ocorreu a partir de uma pesquisa que era desenvolvida pela Universidade de São Paulo (USP), há cerca de três anos, mas que foi suspensa pelo Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária).
Simone afirma que Denise foi a primeira gata a ser estudada para o tratamento com o uso da cannabis no Brasil. Antes de ser adotada, a pet já sofria com algumas doenças como artrite, artrose, hérnia de disco, bico de papagaio e polirradiculite (uma doença do sistema nervoso). Além disso, de acordo com a tutora, a coluna da felina estava quebrada em oito lugares.
“Denise passava por diversos tratamentos convencionais como acupuntura, fisioterapia, microfisioterapia e quiropraxia que ajudavam mas não tinham o potencial para curar ou diminuir suas convulsões”, diz a tutora.
Para Simone, o fato de Denise estar viva aos 19 anos, sendo uma gata renal, é uma prova de que o tratamento com CBD para animais de estimação é eficaz. O tratamento com a canabidiol se tornou um grande aliado aos outros tratamentos com terapias convencionais que a felina já fazia.
“O resultado foi surpreendente”, diz a tutora sobre o tratamento feito na USP. “Em cerca de três dias as convulsões praticamente desapareceram”, conta a ativista.
A médica-veterinária especialista em fisioterapia animal da FMVZ (Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia) da USP, Maira Formenton , explica que as melhoras não necessariamente se refletem no quadro da tetraplegia, mas sim ao que está associado, como as dores e convulsões.
“A gata Denise tinha muitas dores, resultado de suas lesões na coluna, além de um forte quadro de epilepsia , também decorrentes das lesões”, diz Maira ao Canal do Pet . “O canabidiol foi indicado para o tratamento das dores e da epilepsia e ela realmente apresentou resultados muito bons.”
A fisioterapeuta conta que, antes do tratamento com CBD, Denise chegava a ter vinte convulsões por dia, mesmo tomando dois anticonvulsivantes e diversos analgésicos.
“Hoje o quadro dela está bem controlado e tem poucas convulsões, quando causadas por estímulos mais intensos, como barulhos extremos. For isso, ela não tem mais e, atualmente, toma apenas um anticonvulsivante. Foi realmente uma melhora muito significativa.”
Em quais espécies de animais a canabidiol já foi testada?
Maira Formenton diz que ainda não existem muitos estudos com o uso da canabidiol em animais. As principais espécies são os cães, os gatos e, em alguns casos, os equinos . A grande dificuldade se deve à falta de autorização para o acesso da substância.
“A maioria dos estudos são realizados em cães, que são mais fáceis de serem pesquisados. Mais precisamente, são cinco estudos sobre artrose em cães e um sobre convulsões. Assim como o estudo realizado com gatos. No caso dos felinos, os estudos ainda estão em fase de farmacocinética e farmacodinâmica, ou seja, ainda faltam estudos clínicos em gatos”, esclarece a especialista.
Segundo ela, ainda é preciso mais estudos para conseguir entender melhor o efeito da canabidiol em animais, “muito ainda é feito pela transposição dos efeitos que temos em humanos, nos quais as pesquisas já estão bem avançadas”.
“Existem muitos estudos realizados em animais de laboratório, como ratos e camundongos, que apresentam efeitos muito promissores. Porém, como eu sempre explico aos meus alunos, ‘um cachorro não é um rato’. Então, mesmo esses efeitos promissores, ainda precisam ser testados em cães, e é o que tem sido feito”, complementa a veterinária.
Para quais tipos de doenças a canabidiol oferece resultado e como pode ser aplicada?
Maira diz que a principal forma de aplicação em animais, principalmente cães e gatos, é por via oral. “A administração é feita com o óleo [da canabidiol], ou em cápsulas que têm boa absorção e boa biodisponibilidade, e nós já conhecemos a farmacodinâmica e farmacocinética.”
“As principais indicações que nós temos hoje são para os casos de dores crônicas, como, por exemplo, as dores neuropáticas, dores de automutilação, dores em relação ao câncer”, diz a Maira, que acrescenta: “A CBD não tem efeito para o tratamento do câncer, apenas para as dores relacionadas ao câncer, assim como para efeitos colaterais da quimioterapia e, também, para questões como as da epilepsia, que é um dos principais usos.”
Outro uso bastante promissor, conta a veterinária, é para casos de ansiedade, algo já bastante difundido em humanos e, também, estudado mais recentemente em animais de estimação.
Para casos de depressão, a veterinária esclarece que são mais difíceis de se avaliar em cães e gatos. “Isso porque os animais não falam sobre depressão, então, não temos como avaliar a doença neles, porém, temos como avaliar a ansiedade. E temos embasamento para indicar [a CBD] nos casos de ansiedade ou mesmo para casos de estresse. Por exemplo, existe um evento estressante em que o animal vai ter um transporte, ele vai ficar mais ansioso, mais estressado, o uso da canabidiol pode ser indicado também nesse caso.”
A canabidiol como uma aliada da fisioterapia e outros tratamentos
Para animais que não andam devido a paralisias ou paraplegias, Maira deixa claro que não existem evidências de que a canabidiol e derivados da canabidoides auxiliem no retorno da volta dos movimentos. Porém, o medicamento se torna um grande aliado de tratamentos importantes para a evolução dos pacientes.
“O que nós temos é que esses animais com problemas de coluna têm, costumeiramente, muitos problemas de dores associados. Então, dores neuropáticas, dores de compressão nervosa, relacionadas a doenças da coluna que levaram à paralisia, podem ser controladas com o auxílio do canabidiol.”
Maira diz que a dor pode se tornar um fator limitante ao animal, que não conseguirá fazer uma fisioterapia, por exemplo.
“As pessoas podem associar que um cão voltou a andar por causa do uso da canabidiol, quando o canabidiol foi apenas um auxiliar para outros fatores. Em relação a reversão de uma paralisia, não existe nenhuma evidência científica sobre isso”, esclarece.
O preconceito com a maconha atrapalha os estudos com a canabidiol
A cannabis tem duas substâncias principais, a canabidiol e a tetrahidrocanabinol (THC), e ambas podem ser utilizadas de forma medicinal. Porém, somente a THC é responsável pelos efeitos psicoativos característicos da maconha, o que gera toda a polêmica quando se fala da liberação medicinal das substâncias contidas na planta.
Maira afirma que a THC, para uso em animais, tem um potencial muito mais tóxico do que a CBD, mas não existe risco de causar nenhuma dependência química (nem mesmo no uso medicinal em humanos).
“A dependência química, como a gente fala em humanos, depende de buscar a droga. No caso do animal, ele só terá a substância que for fornecida para ele”, ela diz. “Outro fator que causa essa dependência do THC, falando do uso recreativo da droga maconha, é que muitas vezes há a presença de outros aditivos. Isso não acontece com o CBD e THC como medicamento, porque a dose é muito controlada e o uso só é feito sob acompanhamento médico.”
A veterinária alerta ainda sobre a importância de diferenciar o uso medicinal dos derivados da maconha para o uso recreativo.
“Isso gera muito preconceito, pois as pessoas confundem muito, mesmo em relação ao uso recreacional. Este, de forma abusiva, gera problemas como dependência e aumento no índice de câncer da boca, da garganta e vários outros efeitos colaterais.”
Os estudos da USP e a falta de incentivo
Apesar de os testes terem apresentado efeitos positivos, como o caso da gata Denise, as pesquisas precisaram ser interrompidas e o estudo não tem previsão para ser publicado. Como explica Maira Formenton: “Infelizmente, o uso da medicação ainda não foi liberado”.
“Hoube uma época, quando a gata Denise foi inclusa nesse acompanhamento, que tivemos acesso à distribuição do canabidiol. Porém, depois disso, ele foi suspenso pelo Mapa [Ministério da Agricultura e Pecuária] porque eles realmente entenderam que não havia autorização para o uso e, depois disso, os estudos no ambulatório de dor e cuidados paliativos da FMVZ [Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP] foram suspensos por causa da dificuldade e da burocracia para você conseguir pesquisar uma substância não autorizada. Agora nós estamos aguardando para que haja essa liberação do uso e consigamos continuar com a pesquisa dentro da área.”
A veterinária continua: “Eu acho que nós temos que lutar pela regulamentação da medicação, a qual o acesso deve ser livre. O acesso à droga recreativa é uma outra discussão que não cabe junto à discussão pela medicação.”
Maira aponta ainda que essa falta de regularização faz com que pessoas busquem outros meios para conseguir o medicamento, muitas vezes de forma ilegal.
“Para conseguir a medicação para os seus animais, as pessoas acabam usando de métodos alternativos, ilegais ou não oficiais, justamente porque a aquisição oficial não é permitida e isso gera produtos de má qualidade ou produtos caseiros que, aí sim, há chance de haver uma intoxicação”, alerta.
“A regulamentação e o acesso legalizado à medicação para os animais é extremamente importante para que nós não tenhamos exatamente essa questão de as pessoas irem buscar a medicação de forma ilegal”, reforça a especialista.
Um caso de urgência
O caso de Denise, como outros já estudados, mostrou o potencial terapêutico da cannabis para animais e como o medicamento pode ser uma opção viável para aqueles que não encontram alívio em tratamentos convencionais.
Simone Gatto, como tutora de Denise, diz que a história de sua pet serve como exemplo de superação e esperança. “Sua história inspiradora abre portas para novas possibilidades no campo da medicina veterinária, provando que é possível melhorar a qualidade de vida dos animais por meio de tratamentos inovadores.”
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