A natureza dos animais de estimação é tão complexa quanto a nossa, o que provavelmente muitas pessoas não param para pensar é que os pets podem sofrer de muitas doenças similares às doenças dos seres humanos, sejam clínicas ou psicológicas.
Para a maioria das pessoas, quando um pet está se comportando de forma indesejada ou mesmo com algo anormal, que gera a preocupação do tutor, o comum é que se recorra a um adestrador – ou seja, um treinador – para que esse consiga um meio de corrigir determinado comportamento.
Porém, nem sempre as questões de comportamento dos animais de estimação são meramente por uma “falta de educação” e podem ser bem mais complexas e o que o pet precisa é, na verdade, de terapia.
Para entender melhor sobre o que está por trás do trabalho de um profissional especializado em comportamento, o Canal do Pet conversa com a doutora em psicobiologia, especializada em comportamento felino, Juliana Damasceno, e a médica veterinária Jade Petronilho.
Médico comportamentalista e adestrador comportamental, entendendo a diferença
Juliana Damasceno destaca que existem categorias diferentes de profissionais que atuam no tratamento comportamental dos animais, sendo eles o adestrador comportamental, o consultor comportamental, equivalente ao adestrador, mas com foco nos gatos.
“Nós não temos o título ‘adestrador’ em gatos, até existem alguns adestradores que trabalham com cães e gatos, mas geralmente não são tão aprofundados nos felinos. Então [para tratamentos] nós indicamos que sejam especializados em felinos porque, apesar de haver muita similaridade nas condutas de aprendizagem, há muita diferença em relação às especificidades de cada espécie”, pontua Juliana.
Por fim, existem os veterinários comportamentalistas, e Jade Petronilho aponta que a diferença entre as áreas de atuação desses profissionais é bem grande. “O médico veterinário comportamentalista é formado em medicina veterinária e especializado em comportamento”, diz.
“Hoje em dia, temos cursos de pós-graduação que conferem esse título para nós, nos dando a possibilidade não somente de mudar comportamentos por meio de alterações na rotina e educação do cão ou gato como também utilizando medicamentos controlados e produtos voltados para cada problema apresentado. O adestrador comportamental atua mais em corrigir as questões dos animais por meio de adaptações, ‘reprogramação’ de padrões, condicionamento, entre outros”, esclarece a veterinária.
Juliana complementa que o adestrador, ou consultor comportamental, ainda não é uma profissão reconhecida, já que não há uma formação própria para isso (ao contrário do comportamentalista que requer pós-graduação), mas sim uma série de cursos que o adestrador precisa fazer para se especializar nessa área. “Esses profissionais também se formam de várias maneiras e existe uma instituição internacional para fazer o registro, mas não há uma legislação, uma normativa, para essa profissão”.
Animais também precisam de psicólogos
Jade e Juliana afirmam que o médico veterinário comportamentalista é o equivalente a um psiquiatra para animais.
“Quando falamos de psicologia, ela costuma ser baseada em uma relação, um vínculo e um tratamento baseado em conversas entre o indivíduo e o psicólogo/analista, o que na medicina veterinária não é possível, uma vez que os animais não falam como, então, temos que inferir muitas coisas levando em conta o que o tutor nos diz e fazendo observações comportamentais variadas. Ainda assim, o comportamentalista veterinário se baseia muito em materiais e conteúdo da psiquiatria e psicologia humana (até porque muito do que sabemos sobre essas áreas é resultado de testes e experimentos realizados com animais)”, explica Jade.
Em casos de tratamentos mais sérios, que requerem o uso de medicamentos, somente um veterinário comportamentalista pode prescrever. “Nem sempre é necessário administrar medicamentos em tratamentos comportamentais e, principalmente para os gatos, são poucas as vezes em que há necessidade de administrar medicação”, diz Juliana, que complementa. “Quando há [a necessidade] nós conseguimos ter a parceria com o próprio veterinário de confiança do tutor e, em conjunto, conseguimos encontrar o melhor tratamento. É muito importante trabalharmos junto com o clínico”.
Como saber quando o pet precisa de terapia
Juliana aponta que existem duas classificações diferentes de comportamento que fazem com que os tutores busquem por ajuda profissional. São os “indesejados” e os “distúrbios comportamentais”, que são os comportamentos anormais.
Jade alerta: “Muitas vezes o que pode ser considerado um problema de comportamento em cães e gatos não é, de fato, um problema para a espécie e é importantíssimo que os tutores saibam a respeito disso e entendam um pouco mais sobre necessidades espécie-específicas e como podemos trabalhar isso para melhorar a nossa relação com eles”.
Comportamentos indesejados são aqueles que desagradam aos humanos, mas são naturais para as espécies, como cavar e destruir sapatos é natural para os cães e aranhar a mobília e subir em locais elevados é natural para os gatos.
“Por outro lado, transtornos como síndrome da ansiedade por separação, compulsividade, fobias e agressividade merecem atenção especial. Casos extremos não somente são um problema para as pessoas, mas também comprometem o bem-estar e qualidade de vida dos animais e, a partir do momento que nos responsabilizamos em cuidar deles, é nosso dever também ter responsabilidade emocional com eles”, afirma Jade.
Esses distúrbios comportamentais, como explica Juliana, são aqueles que se diferem da maneira natural como o pet age em seu dia a dia, em frequência ou intensidade. “Esses comportamentos podem ou não estar atrelados a condições clínicas. Muitas vezes um comportamento anormal vem como sintoma de algo físico, ou algo físico decorrente de questões comportamentais. Costumo dizer que corpo e mente não estão separados”.
O seu pet também pode precisar de terapia
São muitas as questões que podem afetar o comportamento do pet, de uma forma que prejudique o seu bem-estar. Desse modo, é importante que o bichinho tenha um atendimento médico, como uma terapia.
O funcionamento é semelhante ao de um tratamento terapêutico de humanos. “Cada consultor comportamental ou veterinário comportamentalista estipula quão distante deve ser um atendimento do outro. A primeira sessão é mais longa porque precisamos levantar todo o histórico do caso, para então seguir com o tratamento, que não tem uma duração estimada e pode durar de acordo com a situação”, explica Juliana.
E a terapia do pet também deve ser acompanhada pelo tutor, ressalta Jade: “É fundamental que todos os membros da família estejam comprometidos com o tratamento para que ele tenha um sucesso satisfatório. A periodicidade desse acompanhamento vai variar de acordo com o quadro que o animal apresenta, mas especialmente em casos extremos e/ou em que o animal precisa fazer o uso de medicamentos controlados, é mandatório ter esse acompanhamento mais de perto”.
As consultas podem ser realizadas de forma presencial ou on-line, durante os atendimentos o profissional irá avaliar o comportamento do animal no ambiente em que ele vive. “Todo o manejo envolvendo o ambiente desse animal que afeta diretamente o histórico comportamental do bem-estar dele, a anamnese que é imprescindível para levantar todo o histórico comportamental e clínico do indivíduo”, diz Juliana.
“Precisamos descartar problemas de saúde que possam justificar algumas mudanças comportamentais. Uma vez que todas as possibilidades foram descartadas, é hora de identificar o problema e criar um plano de ação, seja ele com ou sem o uso de medicamentos controlados ou outros produtos que podem auxiliar no processo. Vale lembrar aqui que somente o uso de medicamentos ou produtos NUNCA será eficiente. Nesse caso, funciona exatamente como com humanos: é preciso fazer o acompanhamento psicológico, com terapia, e psiquiátrico, com medicamentos, simultaneamente e de forma constante, até que o quadro seja sanado ou, ao menos, minimizado”, ressalta Jade.
O que o tutor deve fazer durante a terapia do pet
Como os animais não podem falar, cabe ao tutor passar todos os detalhes sobre a rotina do animal, quanto mais informações ele trouxer para a consulta, melhor. Juliana explica que o que mais ajuda nesses casos é a visualização dos comportamentos.
“É imprescindível que o tutor conte detalhes e traga registros do que vem acontecendo porque nem sempre o consultor, seja presencialmente ou on-line, vai conseguir observar este comportamento.”
“O atendimento é baseado na anamnese com perguntas gerais e específicas, bem como avaliações de comportamento para identificar as questões trazidas pelos tutores. Os donos que tiverem o histórico do animal devem ser bastante detalhistas e nos passarem até mesmo detalhes simples, que possam parecer pequenos e básicos”, complementa a veterinária.
Juliana ressalta que a presença de uma pessoa diferente no ambiente pode fazer com que certo comportamento não aconteça, entre outros fatores, por isso, se o tutor puder registrar o problema por meio de vídeos, ajudará o profissional a avaliar.
Como o profissional identifica qual é o problema do pet
Sabendo que o tutor pode afetar o comportamento do animal, direta ou indiretamente, ele também deve seguir as orientações do profissional. Mas como saber se o problema do pet é consequência de algo que o tutor tem feito?
“Nós conseguimos identificar por meio da visualização dos comportamentos e por meio dos questionamentos que fazemos”, diz Juliana. “Nossos questionamentos são embasados de acordo com essa visualização, quando não temos esse material é preciso que o tutor descreva o comportamento do pet e, conforme ele vai descrevendo, o terapeuta deve ter o máximo de base do comportamento e da etologia do pet, para ele saber quais questionamentos deve fazer e saber a diferença do que é um comportamento normal e do que é um distúrbio comportamental”, explica.
Alguns problemas podem ter causas multifatoriais e o profissional deve identificar todas elas, todos os “gatilhos” que levam a um determinado problema, como a agressividade, por exemplo. Identificando a causa, ela pode ser tratada.
“Esse é o grande diferencial de um tratamento comportamental. Nós não vamos interromper um comportamento. Nós vamos tratá-lo direto na base, por isso precisamos dessa investigação mais profunda e esse profissional precisa ser o mais capacitado possível”, afirma Juliana.
Se o “gatilho” vem do tutor, ele também precisa de terapia?
Jade afirma que sim! “Alguns problemas podem ser potencializados ou até causados pelos tutores, por isso é importantíssimo que todos da família entendam o problema e estejam dispostos e com paciência para todo o processo, que comumente é demorado e multifatorial. Obviamente que o comportamento do tutor reflete no comportamento do animal, mas nós não vamos tratar o tutor”.
A especialista em comportamento felino explica que, pelo contato com o tutor, é possível identificar e, desse modo, passar orientações e, muitas vezes, até mesmo fazer um encaminhamento. “Nós sugerimos que aquele tutor precisa de um acompanhamento profissional especializado também. Quando surge essa abertura nós fazemos essa sugestão", conta.
Para Juliana é fundamental que o profissional que irá atender o pet tenha um olhar especializado também no humano, para que ele compreenda que tenha empatia não apenas ao estágio emocional do animal, mas para o estado emocional do tutor.
“Muitas vezes o estado emocional dele [tutor] vai refletir no comportamento do animal, assim como o contrário pode acontecer”, diz.
“O comportamento do pet vai refletir no emocional do tutor e isso vira uma bola de neve. E isso vai implicando numa família, na relação de um casal. Então vamos sim permeando esse tratamento com o humano de uma forma indireta, por isso que o propósito do profissional deve ser o bem-estar aos lares, porque quando entramos na casa das pessoas, nós tratamos as pessoas”, reflete a comportamentalista. “Esse tratamento não é de maneira direta, por isso indicamos que o tutor busque também um acompanhamento, se necessário”, completa.
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