Deixar herança para animais de estimação é um tema ainda pouco debatido no Brasil, mas que tem ganhado destaque nos últimos tempos. Segundo o Censo Pet, levantamento anual feito pelo Instituto Pet Brasil, os queridos pets já são quase 150 milhões em solo brasileiro.
Um caso em específico, sobre herança deixada para animais de estimação, chamou a atenção no Brasil recentemente. Nélida Piñon, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, surpreendeu ao declarar que os quatro apartamentos que estavam em seu nome não poderiam ser vendidos enquanto a pinscher Suzy, de 13 anos, e a chihuahua Pilara, de 3, estivessem vivas . A escritora morreu aos 85 anos, em dezembro de 2022.
Afinal, é possível deixar herança para animais de estimação?
Em sentido literal, a resposta é "não", contudo, é possível garantir proteção de maneira indireta, é o que explica a advogada Laura Brito, especializada no Direito de Família e Sucessões. Ela justifica a afirmação baseada na legislação brasileira que permite apenas pessoas físicas ou jurídicas como herdeiras. "Deixar herança, por exemplo, para um gato, não tem efeito legal", diz ela.
“Pet não é uma pessoa e, por isso, não pode ser dono de nada, pois não é sujeito de direito. Mas é possível protegê-lo”, afirma a advogada, relembrando o caso de Nélida Piñon.
“Temos, nesse caso, duas hipóteses. A primeira é que a escritora tenha feito o testamento determinando um ‘legado com encargo’; a outra é que tenha feito o chamado 'testamento ético'”, analisa.
Legado com encargo é quando o testador grava a herança com uma obrigação, sendo que a aceitação do bônus é acompanhada do ônus. O testamento ético, por sua vez, tem natureza moral e consiste em uma recomendação para quem receber o patrimônio, explica a advogada.
O texto, que pode ser uma carta, informa ao herdeiro os desejos de quem deixou a herança, dentro de uma relação de confiança. No caso da escritora Nélida Piñon, a exigência deixada foi a de cuidar das cachorrinhas e não vender os imóveis nos quais as mesmas residem e que garantem rendimentos para o sustento do padrão de vida das pets.
Em ambos os casos – legado ou testamento ético –, a proteção é necessariamente intermediada por quem pode, de fato, herdar o patrimônio, ou seja, uma pessoa.
Dalcimere Soares Gomes, advogada que atua na área de Família, Sucessões, e Trabalhista, corrobora com as afirmações da colega de área.
"A legislação brasileira não prevê a possibilidade de doação de um bem ou herança diretamente para animais, pois eles não possuem vocação hereditária, de acordo com o que prevê o Código Civil Brasileiro, em seus artigos 1.789 e 1.799", afirma a especialista.
"O que ocorre é que o dono do animal pode deixar para o pet um bem de forma indireta, ou seja, por meio de um tutor/responsável, nomeado pelo dono, para que utilize esse bem deixado como forma de cuidar e zelar pela vida e bem-estar do animal."
A advogada explica que, geralmente, o tutor recebe esse bem acompanhado de um encargo, ou seja, "recebe o bem deixado desde que o administre-o de forma que supra as necessidades do pet", como também explicado por Laura.
"Essa doação pode ser feita por meio de um testamento, ou até mesmo por escritura pública de doação com encargo, documento que deixará de forma expressa a vontade do tutor do animal, mesmo após o seu falecimento, podendo mencionar, por exemplo, com quem ficará a guarda do animal, onde irá morar, e até mesmo em qual veterinário o animal deverá ir", diz Dalcimere.
Ela ainda reforça que é importante que o documento que garante os cuidados ao pet após a morte do tutor "seja registrado em cartório para que tenha segurança jurídica".
Segundo a advogada, os pets ainda são vistos de acordo com a legislação brasileira como patrimônio de uma pessoa (artigo 82 do Código Civil), "como um carro, ou uma casa, por exemplo", e neste sentido não possuem personalidade jurídica, apesar deles já terem sido reconhecidos pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como seres capazes de sentir, desde 1978.
Inexistência de herdeiros
Voltando ao caso Nélida Piñon, a advogada Laura Brito destaca que a escritora só pode fazer o que fez, ou seja, deixar todos os seus bens para uma pessoa de fora da família, pela inexistência de herdeiros necessários.
O Código Civil brasileiro reconhece como herdeiro necessário, ou seja, aquele que tem direito a, pelo menos, 50% do patrimônio deixado, os ascendentes, descendentes e cônjuges.
"Quando morreu, Nélida não era casada, não tinha filhos e os pais já eram falecidos. Uma pessoa próxima à escritora foi nomeada tutora das cachorras e do patrimônio. É ela quem tem a obrigação jurídica ou moral de executar o desejo externado por Nélida", afirma Laura.
A escritora quis garantir que as cachorras sigam com o mesmo padrão de vida mesmo após a sua morte, um desejo evidente em muitas pessoas que dedicam suas vidas a cuidar dos pets. "O que fica claro em qualquer situação é a necessidade de ter uma relação de confiança com quem será nomeador tutor", salienta a especialista.
A advogada Dalcimere Soares Gomes ainda explica que é possível deixar parte da herança para instituições voltadas para a causa animal.
"Nos casos em que o tutor desejar que o pet receba a sua herança, poderá, de acordo com o disposto no inciso III, do artigo 1.799 do Código Civil, deixar 50% da sua herança às fundações ou ONGs que lidam com animais, ou até mesmo criar uma para que seja alcançada a finalidade, respeitando os outros 50% que devem ser destinados aos herdeiros necessários."
Caso internacional
No cenário internacional, é possível citar o caso do
pastor alemão
Gunther VI, que
mora em uma mansão que já foi de Madonna,
come caviar e tem um chef de cozinha exclusivo, cita a advogada.
"A sua fortuna foi de US$ 500 milhões, deixada por sua dona, a condessa alemã
Karlotta Liebenstein. O grupo responsável pelo cachorro já comprou um time de futebol para que ele pudesse brincar no campo. Ele viaja em aviões privados e recebe treinamento todos os dias."
"Em outros países, a legislação vem sendo atualizada para dizer que o animal, apesar de não ser um sujeito de direitos, não é uma coisa, porém o debate sobre a categorização de animais ainda é um desafio presente no Direito brasileiro", finaliza Dalcimere.
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